
É preciso pagar pela produção da água
Projeto preserva mananciais para gerar água pura: recupera solo, contém a chuva e cria fossas sépticas. Mas o ideal seria pagar para o dono da terra garantir a qualidade da água.
Dona Joanirde foi até a cozinha e pegou uma caneca de alumínio; nós a seguimos, por uma picada no meio do mato que nos levou a uma das nascentes que alimentam o Ribeirão dos Lima, curso d’água que desce o morro e desemboca no Jaguari, rio que forma o sistema Cantareira, responsável pelo fornecimento de água para a cidade de São Paulo. Mais na frente o Jaguari se junta ao Atibaia, formando o rio Piracicaba.
Foi há muitos anos a última vez que, levado por meu pai, bebi água assim, diretamente da natureza. Ele me ensinou que a terra, as folhas, os galhos de árvores, os alevinos, os microorganismos, nada disso é sujeira, ao contrário, indica a pureza da água. Saciei a sede e a saudade.
Dona Joanirde Aparecida e o seu marido, José Alves de Oliveira, integram o Projeto Nascente, que fazem do Sítio São José, em Vargem (97 km da Capital) uma referência na preservação nas nascentes e geração de água de boa qualidade por meio de gestão participativa dos recursos hídricos pela comunidade.
O projeto, da Ong Mata Ciliar, foi lançado no ano passado, portanto antes da crise de falta d’água em São Paulo, patrocinado pela Tetra Pak, que, entre outras coisas, financia o plantio de 16 mil mudas de árvores nativas para recuperar a mata ciliar no entorno de dez nascentes na região.
A casa do seu José e da dona Joanirde tinha uma fossa negra, hábito antigo das populações rurais em todo o Brasil, sistema que contamina o solo e polui as correntes de água subterrâneas, os lençóis freáticos, que são os formadores das nascentes. Ora, como garantir a boa qualidade da água com os moradores depositando o esgoto diretamente na natureza, sem qualquer tratamento? Impossível.
Por isso o Projeto Nascentes prevê a instalação de 30 conjuntos de biodigestores de tratamento de esgoto domésticos nas propriedades rurais ribeirinhas. Vinte já foram implantados, inclusive o da casa da dona Joanirde.
Na fossa negra, o esgoto é depositado diretamente no solo, enquanto na fossa séptica ele é recolhido num recipiente fechado, portanto sem contato com o solo, e processado de duas formas: a tradicional é o sistema de dois recipientes: as partículas sólidas permanecem no primeiro e o líquido segue para uma segunda fossa, que contém um filtro de pedras, areia a carvão, de forma que, ao entrar em contato com o solo, a água já esteja limpa. O problema é que esse tipo de fossa precisa ser limpa a cada três ou quatro anos e o resíduo cria outro problema ambiental: onde depositá-lo?
Por isso a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) desenvolveu o biodigestor instalado na casa da dona Joanirde, onde é usado esterco de vaca para diluir a matéria orgânica do esgoto doméstico. O sistema – que usa o princípio do rume do gado - elimina 90% dos vermes e bactérias e o resultado (o que sobra) é uma água rica em minerais, que o seu José usa como fertilizante na lavoura de café e banana.
A topografia do Sítio São José é acidentada, afinal, as nascentes estão sempre num patamar mais alto; os primeiros fios d’água descem o morro, formam ribeirões e depositam as águas nos vales.
Você já ouviu a história das três avalanches...
“Fogo morro acima, água morro abaixo e mulher apaixonada, ninguém segura”.
Imagine, então, o estrago que a enxurrada morro abaixo faz no solo quando este está devastado. A água carrega terra, folhas, ganhos de árvores, todo tipo de material orgânico, que é depositado nos rios, provocando o assoreamento, enquanto as terras da dona Joanirde perdem a força. empobrecem, tornam-se estéreis.
Por isso o Projeto Nascentes prevê também a construção de 200 bacias para a captação de água de chuva, chamadas “barraginhas”. São buracos, redondos, em média com três a quatro metros de diâmetro e dois de profundidade. Servem para interceptar a água da chuva; calcula-se que 60% das águas fluviais são contidas por esse sistema, o que significa, no caso daquela região, 34 mil metros cúbicos por ano. Essa ação resolve de uma só vez dois problemas: evita a devastação ainda maior da área e o assoreamento dos rios e mantém a água no local, que é absorvida pelo solo e retorna aos lençóis freáticos, alimentando os aquíferos.
O engenheiro agrônomo Jorge Bellix, presidente da Mata Ciliar, explica que a devastação da terra nos morros são a causa das inundações nos vales e planícies. Sem a proteção da vegetação natural o solo fica exposto e a terra, além de não conter a água da chuva, é levada pela enxurrada morro abaixo.
“Hoje cai aqui na região 1.400 mm de chuva ao ano – disse Jorge Bellix – nosso desafio é manter essa água na região; as cidades, que hoje estão impermeabilizadas com o asfalto e cimento, não têm condições de absorver a água, por isso ela tem que permanecer aqui na terra. Não adianta desassorear o rio Tietê. A solução está aqui em cima. Se as enxurradas forem contidas, os rios não serão assoreados”.
O diretor de Meio Ambiente da Tetra Pak, Fernando Von Zuben, é mais objetivo na crítica à devastação dos morros e das matas ciliares, que teriam que garantir a boa qualidade do produto nas nascentes:
“A água é matéria prima, é assim que ela tem que ser vista. Mas a Sabesp trata a água como uma dádiva divina; trata a água como se ela viesse de Deus. A Sabesp precisa entender que é preciso pagar por essa matéria prima. Pagar para preservar a sua qualidade nas nascentes. Quer produzir matéria prima? Para isso é preciso preservar a mata e isso custa dinheiro, é preciso pagar por isso, pois a água é um bem finito, se não preservar, acaba”.
Fernando refere-se à necessidade de remunerar os donos das terras onde estão as nascentes, para que eles possam sobreviver sem destruir o meio ambiente, mantendo a mata nativa. Ele acha que é preciso ter uma política de pagamento para esses proprietários em troca da preservação.
E dá um exemplo que viu nos Estados Unidos: fazendeiros que vivem há 100 km de Nova York recebem US$ 100 mil por ano para garantir a boa qualidade das águas nas suas terras, mantendo a mata nativa, contendo a destruição provocada pelas enxurradas e preservando a mata ciliar, que evita o assoreamento das nascentes e ribeirões.
“O custo para a empresa de água para indenizar esses fazendeiros é menor no que o investimento que teria que ser feito para tratar da água, quer dizer: se produz água de melhor qualidade com menos dinheiro”, revelou Fernando Von Zuben.
Além da água pura na nascente, Dona Joanirde e seu José Alves nos ofereceram bananas colhidas alí no sítio, sem veneno. Saboreamos as frutas na varanda da pequena cada de três cômodos, simples e sem nenhum luxo.
Quanto custaria manter essa gente no campo com dignidade? Muito pouco considerando os grandes benefícios que poderia proporcionar aos moradores da cidade.
Então, vamos fazê-lo.